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O termo “psicanálise com crianças” indica uma diferença de considerações entre esta psicanálise e as outras que não são com crianças. As crianças são diferentes dos adultos em termos de que elas se encontram no processo da formação da sua constituição subjetiva. Por que então a psicanálise com crianças, que afirmo ser possível, não teria que ser diferente da “psicanálise com adultos”? A partir de que posso afirmar que há psicanálise com crianças? Quais as suas condições?
Pode parecer evidente que apenas as crianças, por não terem tanto discurso quanto os adultos, sejam capazes de fazer largo uso da figurabilidade[1] enquanto uma condição imposta ao material significante, de forma que o conteúdo de seu discurso seja muito enigmático; que elas sejam dependentes dos adultos que lhes fazem as funções de pai e de mãe para realizar as atividades básicas, e que elas necessitem tomar as falas deles para responderem e demandarem ao outro. Mas, seriam essas características as que são particulares às crianças? Se fossem, que condições específicas colocariam para a psicanálise com elas?
Mas se, por outro lado, pensarmos nos adultos em relação a essas características, poderemos ter a impressão de que eles não diferem tanto das crianças. Os adultos são capazes de fazer funcionar o papel da figurabilidade com os mesmos efeitos de obscurecimento do discurso. E, tal como as crianças, de tomar a fala de outros, inclusive de seus pais, para relatarem um sonho ou para sustentarem o endereçamento de uma demanda. Dependem de outros também para terem um lugar na civilização. Não são por essas características, parece-me, que se pode diferenciar crianças de adultos de um modo útil para identificar a particularidade da psicanálise com crianças.
Contudo, há nas crianças uma característica distintiva que coloca uma condição específica para a psicanálise com elas: sua dependência em relação aos pais, a qual, diferentemente da que pode ocorrer em sujeitos adultos com certos sintomas graves que envolvam dependência de outros, é real. Ela nos indica, além disso, que elas estão numa etapa de sua constituição subjetiva em formação. E coloca, invariavelmente, para a psicanálise com crianças, a condição adicional da confiança dos pais com o analista.
Porém, não me é necessário partir de suposições de que as crianças falem menos do que os adultos ou de que sejam incapazes de se apropriar de suas próprias falas. E nem atribuir suas resistências apenas a uma tendência a brincar e a uma insuficiência do seu desenvolvimento. Ao fazer isso, posso estar me desviando do campo da fala e da linguagem desses pequenos pacientes e usando outros referenciais para escutá-las, como o do mundo adulto.
Isto não é necessário, pois as crianças, mesmo as bem pequenas, falam do seu mal-estar, e de forma que se pode escutar, dentre outras coisas, seu contexto de pequenos sujeitos. Este contexto é, como podemos ler em Freud (1924/1976; 1931/1976), o do complexo de Édipo.
Neste momento, as crianças ainda não se desfizeram de grande parte de suas catexias libidinais de objeto do complexo para substituí-las por identificações, e, portanto, formarem o núcleo do superego[2]. Portanto, não podem abrir mão dessa intensa ligação real com os pais que, além de lhes trazerem satisfação, possibilita que elas se estruturem com a proteção dos adultos. Entretanto, será a criação desse núcleo que possibilitará à criança encontrar um lugar para ela na civilização. Segundo Freud (1931/1976, p. 263), é na criação do superego que se iniciam na criança “todos os processos que se destinam a fazer o indivíduo a encontrar lugar na comunidade cultural”.
O complexo de Édipo nos indica que podemos escutar das crianças o que há de positividade em seu processo de constituição enquanto sujeito, isto é, suas catexias de objeto em suas etapas e transformações até a formação do superego.
É o fato de a criança falar e, portanto, estar na linguagem, que me faz poder afirmar que há psicanálise com crianças. Com a diferença, em relação à psicanálise com adultos, de que o analista não trabalhará com a transferência apenas de um paciente, com tudo o que ela comportar de resistências, mas também precisará contar com a confiança dos pais.
O trabalho do analista continua sendo, a partir da transferência, possibilitar que as crianças articulem livremente seus posicionamentos, suas atividades lúdicas e suas expressões pictóricas às suas falas.
Freud (1923/1976) afirmou há muito tempo que a vida sexual das crianças é fundamentalmente diferente da dos adultos, mas, seu desfecho, diz ele, repousa em apenas uma única diferença. Ela é diferente, pois tem um início bifásico e passa pelas organizações pré-genitais. No entanto, seu desfecho final aproxima-se muito da organização sexual adulta, pois o desfecho da vida sexual infantil também leva a criança à escolha de um objeto. “A única diferença, diz Freud (1923/1976, p. 180), entre o desfecho da vida sexual infantil e a do adulto, é que, na primeira, é apenas de forma incompleta que […] [as pulsões parciais] se combinam sob a primazia dos genitais a serviço da reprodução”.
Em 1923, com o texto A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade, Freud afirma que, neste ponto, a aproximação da vida sexual da criança e a do adulto é ainda mais acentuada do que ele vinha afirmando desde os seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Pois, além de seus desfechos terem uma escolha de objeto, a vida sexual da criança dota o interesse pelos genitais de uma “[…] significação dominante, que está pouco aquém da alcançada na maturidade” (Freud, 1923/1976, p. 180).
Mas será nesta significação que, por outro lado, a organização genital infantil que se constitui passará a se diferenciar, para Freud (1923/1976), da organização genital do adulto. Pois na organização genital infantil apenas o órgão genital masculino existe e, assim, “o que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo” (Freud, 1923/1976, p. 180. Grifo do autor).
Com isso, a fase fálica ganha um novo valor, tanto na análise com crianças, quanto na teoria da constituição do sujeito. Revela seu verdadeiro valor na vida sexual da criança pela hegemonia que adquire nas suas ocupações cotidianas – refiro-me às pesquisas sexuais características do período – e por estar em relação a ela a dissolução do complexo de Édipo, tal como Freud (1924/1976) pôde formular.
Nesse período, entre 1920 e 1931, o complexo de Édipo também vinha revelando a Freud (1924/1976), de forma crescente, sua importância central no período sexual da primeira infância. Com efeito, Freud escreve que o complexo de Édipo é contemporâneo da fase fálica.
Em 1924, no artigo A dissolução do complexo de Édipo, o complexo de Édipo está como estruturante do aparelho psíquico, fornecedor do caminho para as identificações substitutivas das catexias de objeto do período, para a formação do superego, para o período de latência, e, enfim, para a sexualidade adulta. Freud (1924/1976) o articula à fase fálica.
A fase fálica e o complexo de Édipo são conceitos que nos advertem sobre as dificuldades que as crianças[4] podem estar enfrentando quando chegam a uma analise. Porém, ter consciência delas não nos deixa protegido do risco de negligenciá-los na analise. A necessidade que Freud teve de defender a existência da fase fálica mesmo para um analista que lhe era tão próximo, tal como Ernest Jones, e de sustenta-la como “[…] um estágio de desenvolvimento genuíno” (Freud, 1931/1976), e não secundário, como pensava o colega, servem como advertência. Ele o faz em Sexualidade Feminina, um artigo em que ele volta a trabalhar, a propósito da constituição sexual das mulheres, os problemas construídos pelo sujeito quando se encontra com a castração, e num tópico reservado para comentar os pontos de vista de outros analistas sobre o tema.
A psicanálise com crianças é um campo tão propício, a meu ver, a experimentações errantes e de critérios discutíveis. Aliás, é situada por Lacan (1953/1998) como uma das fronteiras em que se apresentou aos analistas a tentação de abandonar os fundamentos da fala em favor de uma pedagogia materna.
Mas, pude ler durante o cartel, em Freud (1923/1976), a direção de tomar a sexualidade infantil pela via da significação. É o que Freud faz no período em tela, mesmo nos textos em que ele faz mais recurso à descrição das posições subjetivas das crianças. Quando ele o faz, parece-me que é para descrever o caminho que as crianças percorrem a partir do momento em que estão afetadas pela hipótese fálica – e se empenham nas pesquisas sexuais, com seus atos de exibicionismo e agressão comuns às crianças pequenas – até o momento em que a significação da castração nas mulheres adquire para elas uma força, frente a qual são colocadas diante de duas escolhas possíveis. Segundo Freud (1923), neste ponto, “a falta da um pênis é vista como resultado da castração e, agora, a criança se defronta com a tarefa de chegar a um acordo [ou não] com a castração em relação a si própria”. Mas Freud (1924; 1927) também indica a possibilidade de a criança rejeitar a castração.
O acordo ou não que a criança faça em relação à falta de pênis na mãe será decisivo para a constituição dela enquanto sujeito.
Até a próxima!
Referências bibliográficas
FREUD, S. “A dinâmica da transferência” (1912). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XII. Rio de Janeiro. Imago Editora. (1976).
______. “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade” (1923). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro. Imago Editora. (1976).
______. A dissolução do complexo de Édipo (1924). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro. Imago Editora. (1976).
______. O Fetichismo (1927). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XXI. Rio de Janeiro. Imago Editora. (1976). 329 p.
______. Sexualidade feminina (1931). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XXI. Rio de Janeiro. Imago Editora. (1976).
LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953). In: Escritos. Tradução de: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Zahar, 1998. IV, p. 238-324.
______. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957). In: Escritos. Tradução de: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Zahar, 1998. IV, p. 496-533.
Notas
[1] Sobre a figurabilidade, ver Lacan (1957).
[2] Sobre a formação do superego, ver Freud (1924; 1931).
[4] Nota em 2023: não apenas as crianças, mas os adultos também.
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