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A série de TV Grey´s Anatomy lançou um episódio em que aborda o tema da COVID 19. É o episódio 3 da 17ª temporada, que tem como enredo central a internação de Dra. Meredith por COVID-19.
Um episódio que aborda um assunto sensível de nossa realidade atual, produzida em uma série de TV tão conhecida pelo grande público, pode suscitar a seguinte questão: qual é o papel que o entretenimento tem na absorção de informações de utilidade pública?
Essa questão me foi gentilmente proposta recentemente.
Sabe-se que o entretenimento tem um papel na absorção de informações de utilidade pública e também uma função cultural importante em sua ampla divulgação. Parece-me que, ao abordar o COVID-19, Grey´s Anatomy faz essa função dupla. Mas, nesse caso, de que informações se trata?
Segundo uma reportagem no site “Today”, assinada por Drew Weisholtz, uma produtora da série, Krista Wernoff, contou ao “The Hollywood Reporter” que o propósito de abordar a COVID 19 foi começar a experimentar o que pode ser para uma médica da série, Dra. Meredith, ser uma paciente com COVID, após ela até então lutar pela cura dos pacientes contaminados. Ela também teria dito mais, que o propósito é informar que “médicos e enfermeiros estão lutando por nós e caindo por nós”.
Podemos também verificar que o episódio traz ainda outras informações socialmente relevantes: a história começa com um comunicado de um diretor médico para um hospital a respeito do contágio por COVID 19, encena a tentativa de controle da transmissão dentro da instituição e mostra também a chegada de novos residentes médicos na unidade. Apresenta a valorização daqueles médicos com mais prática com pacientes com esse tipo de doença em contraste com os outros médicos e também com os pacientes, pessoas comuns que precisam lidar com restrições profissionais, dentre outros aspectos do contexto da Pandemia (por exemplo, um terapeuta sexual se vê na situação de conduzir uma sessão de seu laptop no leito hospitalar). O episódio oferece um retrato da pandemia do COVID-19 no contexto hospitalar.
Certamente, a serie é eficiente em divulgar essas informações, as quais, muitas pessoas não tem acesso diretamente (pois muitas pessoas com COVID não precisam ir ao hospital). Mas, como uma coisa é divulgar informações e a outra é a absorção de informações pelo receptor, isto é, nós, o público, parece-me que a eficácia desse entretenimento para a absorção dessas informações pelo espectador depende do modo como ele opera com a arte. Isto é, de como ele representa, ilumina ou obscurece, a experiência do espectador e seus excessos de prazer e dor. Nesse caso, a arte de que se trata é a relacionada ao teatro, à tragédia, a dramaturgia, dirigida a um grande público internacional.
Por isso, eu não gostaria de entrar no mérito da questão de que o público da série é um público de streaming provavelmente bem educado, nem de que o hospital em questão é um hospital privado americano ficcional.
A psicanálise ensina que um dos artifícios que o ser humano tem à disposição para suportar o mal-estar inerente à vida em sociedade, vulnerável às dores e sofrimentos provocados por doenças e por ações destrutivas do semelhante, é o usufruir a arte. Pois, segundo uma velha fórmula aristotélica, a arte, mais especificamente a tragédia, tem a capacidade de levar o espectador a purgar, através de catarse, os medos e a compaixão envolvidos na cena representada e revivida, e, desse modo, aliviar-se de afetos não elaborados. Por exemplo, no início do episódio, assistimos à compaixão no tom da fala do diretor médico, profissionais de saúde desolados, uma mãe acariciando seu filho com temor. Isto é, a meu ver, representado para que o espectador de hoje coloque-se no lugar da personagem representada a ponto de sentir em si mesmo essa experiência e com isso, fazer catarse e elaboração psíquica.
Facilita muito, para atingir esse objetivo, que a protagonista viva dramas essenciais da experiência humana, isto é, encontre-se com os delicados temas do nascimento, da morte e da sexualidade de um modo que o expectador possa se reconhecer, utilizando, para isso, as referências sociais e da realidade do momento.
Provavelmente não à toa, a produção de Grey´s Anatomy escolheu Dra. Meredith para ser a médica que contraiu COVID-19. Uma mulher amada e admirada pelos colegas, mãe, que sonha com a falta de um grande amor, e que, por isso, é um ser humano com um lado feminino que pode tocar o lado feminino de cada expectador e fazê-lo se emocionar.
Digamos que a emoção que surge no expectador é um sinal de que a informação foi passada com sucesso, isto é, de que, em algum lugar imaginável, há ao menos uma médica que é como nós e que está lutando pessoalmente contra o COVID-19 em nosso lugar.
Por isso, parece-me que o entretenimento tem uma importante função na absorção de informações socialmente importantes, tanto mais quanto melhor operar com a arte, nesse caso, do drama.
Um abraço,