O mito de Édipo significa que o desejo do pai cria a lei

O mito de Édipo significa que o desejo do pai cria a lei

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  Trabalho apresentado em Secção de Psicanálise e Cinema da Práxis Lacaniana / Formação em Escola em 2016.

O filme italiano Édipo Rei[1], de Pier Paolo Pasolini, de 1967, é uma transposição para o cinema da tragédia de Sófocles, que é uma das mais importantes da Grécia antiga e do homem, escrita no século V a. C. Esse mito ainda causa um grande efeito para nós devido às questões para o homem em seu pertencimento ao simbólico que esse mito traz.

O mito de Édipo ocupa um lugar central em psicanálise. Na primeira aula, vimos a presença do complexo de Édipo na obra de Freud do início até o período após a criação do conceito de pulsão de morte. Tanto em Freud quanto em Lacan, podemos ler que a importância do complexo de Édipo se liga ao que ele possibilita de incidência da função do pai, ou metáfora paterna, para a estruturação do desejo do sujeito em sua posição em relação ao objeto.

O filme de Pasolini, comparado ao texto de Sófocles, nos traz importantes diferenças no modo de narrar a tragédia. Porém, vou escolher apenas uma cena, que nos é mostrada no filme, mas que, no texto de Sófocles, nos é trazida por uma testemunha: é a cena em que Édipo arranca os olhos e os joga no chão, tomado de forte emoção e angústia, ao saber da verdade insuportável de seus atos de parricídio e incesto. Este é o efeito, de modo automático, em Édipo, não de um sentimento de culpa, mas do encontro do desejo com a lei[2].

No texto de Sófocles, a cena nos é trazida por um Emissário:

Édipo toma seu manto, retira dele os colchetes de ouro com que o prendia, e com a ponta recurva arranca das órbitas os olhos, gritando: “não quero mais ser testemunha das minhas desgraças, nem de meus crimes! Na treva, agora, não mais verei aqueles a quem nunca deveria ter visto, nem reconhecerei aqueles que não quero mais reconhecer!”[3].

Segundo Lacan, no seminário A angústia, podemos ler que nessa passagem ao ato o objeto que ela atinge. Pois faz a extração do olho como órgão, ou metáfora do orgulho no conhecimento e no reconhecimento, e que, por isso, oculta o campo da pulsão escópica, do Olhar. E é o campo do Olhar que, neste momento, invade a cena na revelação para Édipo de seus crimes atrozes. E é o campo do Olhar que permite a Lacan afirmar, quanto à angústia, nesta cena de Édipo, a identidade do desejo com a lei.

Lacan afirma que o mito de Édipo faz com que o desejo e a lei sejam uma e mesma coisa porque decorre de uma transmutação, para o sujeito, do desejo do pai morto[4].

Porém, o texto de Sófocles e o filme de Pasolini nos trazem tantas linhas de percurso que se entrecruzam nas participações de cada personagem, conduzidas pelo fundo de determinação do oráculo, antes do desfecho trágico, que me permiti trazer a seguinte questão: se Édipo cumpriu seu destino tão funesto, o qual implica a realização do desejo incestuoso, como podemos dizer, a partir de Freud e de Lacan, que o mito de Édipo ensina que o desejo e a lei são uma e mesma coisa?

O destino de Édipo foi cumprir o destino do pai conjugado com o dele próprio, tal como as previsões do deus Apolo. Diz Jocasta a Édipo, em certo momento do inquérito: “o destino do rei seria o de morrer vítima do filho que nascesse de nosso casamento”[5], desse “himeneu abominável”, amaldiçoado pelo deus. E o oráculo de Édipo foi que ele mataria o próprio pai e dormiria com sua mãe.

Segundo Lacan[6] o desejo e a lei são a mesma coisa porque tem o mesmo objeto, a mãe, que precisa ser barrado do sujeito pela lei da interdição do incesto sustentada pela função paterna. Deste modo, a lei traça o caminho, introduz um mandamento na estrutura do desejo enquanto falta não preenchível, nem pelo objeto, nem pelo saber.

Essa identidade do desejo e da lei não ocorre para Édipo apenas no desfecho trágico. Esse momento é revelador porque isso já estava estruturado para ele no inconsciente. Por isso, a cena exemplar de Édipo arrancando os olhos nos possibilita, a partir de uma leitura retroativa até o início do percurso de Édipo, ler que ele teve sua vida marcada pela lei paterna desde o nascimento.

Seu pai fez suporte da lei do deus Apolo, confirmando-a ao tentar escapar da predição de seu próprio destino, no momento em que mandou matar Édipo ainda criança para que não fosse vítima do desejo incestuoso e do parricídio deste, e transmitindo-a, no momento em que sua ordem entrou para a história de Édipo, posteriormente.

Isto, por sua vez, indica que a transmissão da lei ocorreu de modo falhado, mas que essa falha possibilitou a transmissão, pelo fato de que Édipo não morreu, nem no real, e – visto que foi adotado como filho da fortuna por outra família – nem para a dimensão simbólica do desejo.

Com esse arranjo, formou-se em Édipo o enigma de seu nascimento em seu inconsciente. E Édipo permanece determinado pela lei paterna e afastado da possibilidade de realização do oráculo do pai.

Mas, na vida adulta, uma ponta desse enigma emerge. Foi após ter sido chamado de “filho enjeitado”[7] por um outro e isso lhe perturbar imediatamente. O enigma emerge através de um sonho que o leva a procurar o oráculo de Apolo.

Ao ouvir o oráculo, que em Sófocles está assim: “que [Édipo] estava fadado a unir-me em casamento com minha própria mãe, que apresentaria aos homens uma prole malsinada, e que seria o assassino de [seu] pai, daquele a quem devia a vida”[8], Édipo, em Pasolini, ouve um som estridente e perturbador de flauta e sai correndo, tal como conta em Sófocles: “Eu, diante de tais predições, resolvi, guiando-me apenas pelas estrelas, exilar-me para sempre da terra coríntia, para viver num lugar onde nunca se pudesse realizar – pensava eu – as torpezas que os funestos oráculos haviam prenunciado”[9].

Podemos ler nesse oráculo dito a Édipo é o oráculo não-cumprido de seu pai, só que dirigido a ele.  E se ouvi-lo produz nele uma reação de fuga, por não saber das circunstâncias do seu nascimento e de sua existência em Corinto, é porque que seu desejo estava articulado com a lei, de forma que ele não queria, assim como seu pai, o cumprimento desse oráculo. Porém, contraditoriamente, o que se desencadeia em Édipo é que, ao ouvir o oráculo, Édipo se precipita em um movimento que se revelará de realização do oráculo, sem ele saber, pois achava que estava fugindo de seu destino, quando estava indo ao encontro dele.

Guiado pelas estrelas, ou, em Pasolini, pelo suposto acaso, Édipo encontra em seu caminho uma comitiva, que não sabe ser a do rei Laio. Pasolini encena que, nesse momento, Édipo troca olhares com o servo. O líder da comitiva fala “sai daqui, maldito!”, e Édipo, após ouvir tais palavras, e lutar contra os servos do rei, retorna para diante da comitiva. O rei coloca uma coroa e Édipo parte para cima dele e o mata brutalmente. Deste modo, Édipo comete, sem saber, o assassinato do pai.

Nessa cena, Pasolini indica a presença de um olhar sutil – indicando, também deste modo, a forma Olhar do objeto em falta do desejo e enfatiza que o ato de Édipo foi contra o rei, o que, no filme, e em Sófocles, será admitido por Édipo com muita dificuldade, hesitação e sofrimento.

Pasolini tampouco nos poupa de verificar, através das vestimentas e da barba que Édipo vai portar quando se torna rei, a identificação de Édipo com rei que ele matou e que é seu pai. O que pode nos lembrar que Freud já dizia que a identificação ao pai é a primeira identificação com o objeto.

Édipo Rei ocupa seu lugar na cidade e na família após tê-lo tomado de seu pai, à custa de se tornar um criminoso. Neste momento, com Tebas tomada pela peste, ele recebe o oráculo de Apolo levado por Creonte: “o rei Apolo ordena, expressamente, que purifiquemos esta terra da mancha que ela mantém; que não a deixemos agravar-se até tornar-se incurável”[10]. E que “urge expulsar o culpado, ou punir, com a morte, o assassino, pois o sangue maculou a cidade”[11]. Trata-se da morte do rei Laio, que reinou antes de Édipo tornar-se rei, e o deus estava exigindo que seu assassino fosse punido.

Aqui também essa determinação do oráculo é muito próxima da que Laio fez a Jocasta em relação à Édipo, o que indica, mais uma vez, a identificação de Édipo com o pai no tocante à lei. Segundo Lacan[12], “a lei nasce da transmudação ou mutação misteriosa do desejo do pai depois de ele ser morto, e a consequência disso […] é o complexo de castração”.

A partir daí, a tragédia de Édipo segue na reaproximação sucessiva e hesitante do desejo com a lei. E se o complexo de Édipo o leva a fazer seu corte, no real, no olho, que é o que no corpo encobre a dimensão do Olhar quando essa dimensão se reapresenta, é porque Édipo possuiu o objeto do desejo e da lei, ou seja, gozou com a mãe, mas também porque ele dá um passo a mais: ele vê o que fez, e, sendo o que ele fez da ordem do indizível, ele o fez surgir como imagem ao fim de sua busca por um saber.

Isso é um tropeço do sujeito com a consequência da passagem ao ato de arrancar os olhos. Édipo olha “seus próprios olhos, inchados por seu humor vítreo, no chão, como um monte confuso de dejetos”[13], ele olha os olhos enquanto tais, como objeto-causa da concupiscência derradeira de ter querido saber demais[14].

Esse trágico final realiza e manifesta a identidade do desejo com a lei, de um modo espantoso. Pois, se o sujeito se constitui pelo complexo de Édipo que lhe produz uma divisão – entre o saber e o não saber, entre o saber e a verdade – que deixa um resto, esse resto se (re) apresenta de várias maneiras e decide, ao final, a posição do sujeito em relação à incidência do função paterna.

O ato de Édipo aponta para o objeto a Olhar, ao qual o sujeito se liga num certo tempo de sua constituição no campo do desejo. Sendo esse objeto aquele que é o mais enigmático em sua função no desejo, mas também o que mais elude a função da falta no desejo, isso o torna de grande interesse para a psicanálise.

Por fim, Lacan[15] aponta na esquize do Olho e do Olhar um nível de divisão subjetiva em relação ao qual a psicanálise permite ao sujeito avançar na articulação do seu desejo estruturado em torno de uma falta.

Até a próxima!

John Walton

 

Notas

[1] PASOLINI, Pier Paolo. Édipo Rei. Arco Film Somafis, 1967. 104 min.

[2] LACAN, Jacques (1962-63). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005

[3] SÓFOCLES. Édipo Rei. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 77.

[4] LACAN, 1962-63/2005.

[5] SÓFOCLES, 2001, p. 48.

[6] LACAN, 1962-63/2005.

[7] SÓFOCLES, 2001, p. 52.

[8] SÓFOCLES, loc. cit.

[9] SÓFOCLES, loc. cit.

[10] Idem, p. 17.

[11] Idem, p. 18.

[12] LACAN, 1962-63/2005, p. 120.

[13] LACAN, 1962-63/2005, p. 180.

[14] LACAN, loc. cit.

[15] LACAN, Jacques (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

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