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Se Lacan[1] aborda a esquize do Olho e do Olhar, à primeira vista estranha à psicanálise, é para que a situemos, não visando uma retificação das representações conscientes do sujeito – via científica e psicologizante – mas a constituição do sujeito em sua relação com o Outro, para a qual os conceitos fundamentais da psicanálise nos conduzem. De que modo, a partir dessa esquize, podemos abordar o campo escópico de modo a indicar a via para a constituição do sujeito?
A constituição do sujeito como efeito do corte do significante no campo do Outro implica um corte no cross-cap – forma olhar do objeto a em função no desejo – para o estabelecimento de uma falta que não se feche pelo símbolo. Isso implica que o sujeito atravesse a fixação da pulsão na captura imaginária que, ainda que tenha uma matriz simbólica[2], e cause prazer ao sujeito, e ainda que, no nível da consciência, ele aceite ser objeto do conhecimento científico, deixa-o em função de nadificação ativa, por estar acomodado ao olho e ao olhar do Outro[3].
Lacan, ao abordar o campo escópico, indica seu ponto tíquico – o engodo do encontro da imagem sonhada – e aponta que a pulsão escópica é correlativa da forma de objeto a mais oculta, que é o olhar, cujo reflexo é o que mais elide a castração. Mas indica, deste modo, que a via é enfatizar o ponto tíquico e constituir o Olhar correlativo a – φ
O campo escópico, que tem a estrutura da esquize do Olho e do Olhar, pode ser situada numa esquize mais profunda, a de tiquê e autômaton, que é da ordem da repetição.
A repetição marca o segundo tempo da certeza de Freud do inconsciente. O primeiro tempo é o do esquema ótico, em que o inconsciente e o consciente, passando pelo pré-consciente, são separados por uma tela. O desejo, que move o aparelho, e cuja fonte está no inconsciente é impulso para “uma repetição da percepção vinculada à satisfação da necessidade”[4], a qual termina em alucinação. Esta necessidade, por ser sexual, só se constitui se o ser vivo se constitui no Outro[5]. Com efeito, Lacan afirma que os traços mnêmicos são significantes e, no intervalo entre percepção e consciência, situa-se o Outro, que se abre na transferência.
Encontra-se aí o primeiro momento da repetição, que Freud[6] chamou de acting-out, em que o sujeito atua o inconsciente reprimido através de cenas, inclusive de forma visível e concreta.
Este ainda não é o conceito de repetição, mas um dos movimentos do retorno do desejo inconsciente e da pulsão. Lacan[7], a partir da estrutura do significante, ensina que o esquema ótico introduz uma noção de repetição que subverte a noção de retorno de signos. O ponto de subversão está na noção de alucinação.
Lacan fala que a noção de alucinação em Freud “mostra até que ponto ele identifica o sujeito ao que é originalmente subvertido pelo sistema significante”[8]. Isto o permite, a partir da leitura dos tempos da asserção do inconsciente em Freud, a situar a repetição na ordem de tiquê, que é o encontro com real.
De fato, Freud só articularia o conceito de repetição em 1920. Ele escreve que a repetição é pulsional, e, como toda pulsão, “uma espécie de elasticidade orgânica”[9] que visa a restaurar um estado anterior de coisas, que foi obrigada a abandonar pela pressão de forças externas cujas impressões foram aceitas pela pulsão para uma posterior repetição.
A prova disso, diz Freud, é que a pulsão de repetição pode ser encontrada no poder de regenerar um órgão perdido. No entanto, quando os detours da pulsão são muito curtos, ela entra em curto-circuito. Nesse ponto de vacilação do desejo, é importante enfatizar uma ordem de tiquê própria à repetição. E lembrar o que Freud diz das pulsões sexuais que, articuladas à da pulsão de repetição, e, se adiantando a elas, tem a função de fazerem os movimentos da pulsão obterem um alcance cada vez maior.
A partir de Lacan, pode-se dizer que a repetição situa a primeira Spaltung do sujeito, pois a primeira simbolização, com sua lei da alternância, simboliza a repetição, que “é a repetição da saída da mãe como causa de uma Spaltung no sujeito”[10], que faz uma borda a qual o sujeito lança e traz um objeto que lhe é correlativo. Por isso, a repetição é efeito das primeiras marcas do significante no sujeito que possibilita um primeiro nível de constituição do objeto a, que é o que não se encontra como representado na identidade de percepção e nunca pode ser atingido enquanto tal na repetição.
A invenção do objeto a que possibilita situar o campo escópico em sua esquize na ordem tíquica da repetição.
Na esquize do Olho e do Olhar, o plano do Olho, ou da visão, é correlativo ao sujeito da representação, apoia-se na estrutura especular do narcisismo primário, está na superfície, situando-se na consciência. É nesse nível que a pulsão escópica elide mais completamente o termo da castração. A ilusão do ver-se vendo-se, da conjunção entre ver um objeto e ser olhado por uma pessoa estranha opera uma evitação da função do Olhar[11].
O plano do Olhar escorrega sob o plano do Olho. Pois “o olhar só se nos apresenta na forma de uma estranha contingência, simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia de castração”[12] correlativa a – φ no campo do Outro.
Lacan demostra que esses planos estão entrelaçados através do esquema da sobreposição da anamorfose – que liga o sujeito da representação e objeto e coloca na tela uma imagem – e da anamorfose invertida – que liga o quadro que fixa o campo narcísico do sujeito e um ponto luminoso. Lacan indica que esse esquema ilustra um ponto de angústia, na medida em que, quanto mais o sujeito desenvolve, no que concerne ao seu campo pulsional, a apreensão do objeto pelo domínio da visão, mais um ponto tíquico se acentua e uma mancha indica o sujeito correlativo à experiência de ser olhado por toda parte, por estar corretivo a um ponto luminoso que é um ponto de olhar.
A angústia possibilita ao sujeito avançar no plano da constituição do Olhar correlativo ao desejo inconsciente, visto que essa esquize é mais um indício de que os eventos no plano da consciência refletem o que se passa no campo do inconsciente, onde se situa o desejo que move o aparelho. Mas esse avanço vai depender do grau de atenção que o sujeito dá à sua esquize e também, em se tratando do nível de repetição do acting-out, da transferência, onde convém que o sujeito coloque o inconsciente em ato.
Deste modo, o sujeito pode buscar suas respostas no lugar para onde convém levar as perguntas de seu desejo, o campo do Outro. Pode interrogar, por exemplo, de que modo vem empregando o olho como órgão no lugar do falo “no que ele falta ao que poderia ser atingido de real na visada do sexo”[13]. Trata-se de passar do jogo de logro da dialética do olho e do olhar para o jogo do sujeito, entre percepção e consciência, no campo do Outro, onde a repetição indica a marca primitiva do significante no sujeito e, por outro lado, o desejo infantil e sexual que o mantém no lugar de falo do Outro.
E se “a repetição demanda o novo”[14], como diz Lacan, é por dar lugar às pulsões parciais que podem fazer seu movimento adquirir um alcance novo, por bordearem o objeto a separado pelo corte da entrada do sujeito no ciclo do significante. Parece-me que é neste nível que o cross-cap pode sofrer um corte correlativo a um nível de corte no Outro necessário para que o sujeito se constitui na topologia em que é efeito do significante no campo do Outro.
Até a próxima!
[1] LACAN, Jacques (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[2] LACAN, Jaques (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu – tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[3] Idem, 1964/2008.
[4] FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos (1900). Rio de Janeiro. Imago Ed., 2001. p. 543.
[5] LACAN, 1964/2008.
[6] FREUD, S. “Recordar, repetir e elaborar” (1914). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1969.
[7] LACAN, 1964/2008.
[8] Idem, 1964/2008., p. 54.
[9] LACAN, loc. cit.
[10] Idem, 1964/2008, p. 67.
[11] Idem, 1964/2008.
[12] Idem, 1964/2008, p. 76.
[13] Idem, 1964/2008, p. 103.
[14] Idem, 1964/2008, p. 65.
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