Lacan, Perelman e a metáfora

Lacan, Perelman e a metáfora

Tempo de leitura: 13 minutos

Introdução

Há uma discussão promovida pelo psicanalista Jacques Lacan com o filósofo e teórico da argumentação Chaim Perelman sobre a função da metáfora no escrito A metáfora do sujeito e depois repetida no seminário de 1966-1967 do psicanalista sobre a lógica do fantasma.

A discussão é sobre a verdadeira interpretação da função da metáfora lacaniana.

O objetivo deste artigo é abordar a discussão de Lacan e Perelman sobre a função da metáfora em seu retorno em 1966 para realçar a ligação entre a metáfora e a lógica do fantasma.

 

Metáfora

A metáfora é uma das duas principais operações da linguagem. Ela consiste na substituição de palavras e significados, sendo, por isso, responsável por efeitos de criação artísticos e poéticos e por ampliar a capacidade falante de transmitir através de enunciados e da enunciação.

Por isso, ela se encontra num entrecruzamento de saberes e práticas: arte, linguística, psicanálise, filosofia e estudos da subjetividade.

 

Lacan e a metáfora

Desde o ensino de Lacan, que elaborou a função da metáfora em psicanálise, ela se revela como uma estrutura que é a do sintoma neurótico. É uma operação de substituição de significantes que produz significação, cuja função é formar sintomas na neurose e também estruturar o sujeito correlativo ao inconsciente. Ela é também o modelo do movimento do retorno do recalcado, implícito no sintoma neurótico.

Lacan ensina que a estrutura e a função da metáfora têm uma grande importância teórica e clínica para a psicanálise. Ela faz do sentido, dos enunciados, da enunciação e dos discursos um efeito de operações significantes que resultam no sujeito dividido pelo significante ligado separadamente a um objeto a que é falta de sentido e significação, desobrigando a buscar de um referente para a fala e a linguagem em “coisas” precedentes e exteriores. Ao fornecer a operação lógica e linguageira do sintoma neurótico, situa o campo do ato e do tratamento psicanalítico no campo da linguagem do ser falante em análise. E confere ao sujeito do inconsciente uma estrutura lógica, desfazendo a crença da substância pensante, radicalizando a proposição cartesiana que estrutura o sujeito logicamente (ainda que de modo evanescente).

A função da metáfora, assim como o retorno do recalcado, tem uma dimensão temporal, pois é composto por dois momentos [1]:

  1. O significante primeiro abole o sujeito barrado (o que parece ser uma variação do algoritmo do sujeito barrado);
  2. O sujeito barrado representa para o significante primeiro um sentido.

O sentido é o significante primeiro que engendra o sujeito, é aquele de onde o sujeito surgiu, ou o significante da falta, o qual é equivalente ao objeto a. Ou melhor, o sentido é o objeto a num certo nível, quando preenche a função da Bedeutung de Frege, ou da primeira Bedeutung, desde que o sujeito o articule em seu discurso. O objeto a, nesse nível, é o primeiro referente ou primeira realidade e tudo o que resta dos discursos articulados.

A metáfora lacaniana requer que seja abordada dessa maneira, pois uma falha de raciocínio, ainda mais se for “arrazoável” [2] (leia-se: fazer razão com o objeto a agarrado, revelando-se falsamente natural, religado ao corpo, ao invés de ser apreciado por ele mesmo, isto, é, como objeto falta ao sujeito), pode fazer a teoria analítica tropeçar. Lacan sugere que é o que ocorria na teoria psicanalítica pós-freudiana.

Lacan fornece um exemplo desse tropeço em seu seminário de 1966. Um psicanalista havia escrito que o objeto a anal seria o único suporte do complexo de castração (quando há outras apresentações do objeto a sinalizadas pela angústia). No entanto, essa escrita não leva em consideração que, sendo a castração efeito do significante que divide o sujeito desligando-o do objeto a, ao se apoiar apenas no objeto a, fixa-o em uma de suas apresentações ligadas ao corpo, e, por conseguinte, a um sentido ou enunciado supostamente prévio à linguagem e ao significante, naturalizando-o.

Ainda que isso não deixe de ser um dos modos possíveis de metaforizar, por ser uma escrita também situável na fórmula do fantasma, tomar a função da metáfora apenas por esse efeito de religação do sujeito barrado e do objeto a resulta numa limitação e num equívoco que é muito importante o psicanalista evitar para não obstruir a implicação do desejo correlativo ao sujeito em relação ao objeto a causa de desejo através de concepção naturalizantes do sujeito e do desejo.

 

Por que Lacan retomou a discussão com Perelman sobre a metáfora?

Para evitar esse tropeço em 1966, Lacan quis situá-lo com a lógica do fantasma. Para isso, ele precisou acrescentar uma marcação sobre a função da metáfora proposta por ele de modo a distingui-la de outras interpretações que a façam depender de algum sentido ou enunciado prévio ao significante, como no caso daquela que é fornecida pelo eminente estudioso da linguagem, Perelman. Por isso, Lacan considerou importante retomar a discussão que havia tido com ele sobre a função da metáfora, escrita em A metáfora do sujeito.

Aqui trata-se de tomar essa discussão nessa retomada que Lacan fez a propósito da lógica do fantasma. Por isso, não vou abordar a discussão no tempo do escrito A metáfora do sujeito.

Após ter situado em linhas gerais a função da metáfora de Lacan e a importância em psicanálise de sustenta-la do modo como ele propõe, para alinhá-la com a fórmula do fantasma, é o momento de trazer a interpretação que Perelman faz dessa função fundamental para o sujeito.

 

Perelman e a metáfora

Perelman, em Teoria da Argumentação, interpreta a operação da metáfora de um modo diferente de Lacan. Para ele, a substituição significante da metáfora pode ser reproduzida por um terceiro significante e revelar um significado ideal. Ele monta a função da metáfora segundo uma estrutura de proporcionalidade analógica entre a metáfora e um significado ideal. Propõe uma fórmula da “linguagem reduzida” [3]. Desse modo, Perelman vê na função da metáfora uma função da analogia, a qual retomaria uma retórica antiga, isto é, pré-linguística e mítica.

Lacan já havia respondido a isso e esclarecido como se deve interpretar a sua função da metáfora. Ele não deixa de reconhecer na formula do filósofo uma inspiração no seu axioma do inconsciente e da linguagem, isto é, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” [4]. Mas a fórmula de Perelman é mítica e repousa em um erro, que é reduzir a fórmula da metáfora a uma estrutura de proporcionalidade entre significantes, o sujeito e o significado.

Lacan quer marcar o que impede que se dê à sua função da metáfora a interpretação de Perelman. A função da metáfora tal como propõe Lacan deve ser interpretada a partir da fórmula do sujeito barrado. Isso não ocorre na metáfora do linguista. E nem se pode exigir isso dele se ele não trabalha com a noção de sujeito lógico, o que provavelmente é o caso.

Mas a interpretação de Perelman da metáfora, ainda que aparentemente aceitável para estudos da linguagem que não trabalhem o sujeito lógico, correlativo ao inconsciente, é um erro para a teoria psicanalítica, cuja clínica trata desse sujeito. Mais precisamente, essa abordagem de Perelman do significante é estranha ao sujeito.

Mesmo assim, a fórmula de Perelman, se aplicada na prática com o sujeito, não é sem consequências para a abordagem do inconsciente. Ao se articular uma estrutura de proporcionalidade entre um significante e outro significante através de um terceiro significante e, com isso, um significante com um significado, o recalcado será tratado como um significado inscrito à priori, tendo por consequência a substantificação do inconsciente em uma estrutura mítica. Isso torna a ligação entre significantes muito difícil interpretar.

 

O contraexemplo de Perelman e a orientação de Lacan para a operação da metáfora

E porque Lacan retoma essa discussão, tendo em vista que Perelman não é analista e seus equívocos, portanto, não afetariam a psicanálise? Parece-me que é justamente pelo contrário. Os conceitos de significante e de signo reúnem a psicanálise lacaniana e os estudos sobre a linguagem e, por isso, o que ocorre em um campo pode repercutir no outro. Lacan mesmo aponta que Perelman teria feito uso de seu trabalho, embora sem citá-lo. Lacan, por sua vez, talvez por prudência, estava advertindo aos analistas sobre possíveis equívocos na intepretação da sua função da metáfora.

Mais exatamente, sua preocupação não é com os sucessos ou os equívocos de Perelman, nem dos filósofos e intelectuais (embora lhe interesse acompanhar os trabalhos produzidos naquele campo) mas com a interpretação que os analistas podem fazer da metáfora.

E por que Lacan faz essa marcação sobre a função da metáfora a propósito do tropeço da teoria analítica sobre o objeto a? Porque a função da metáfora lacaniana tem uma operação que é condizente com o objeto a de estatuto lógico, necessário para a lógica do fantasma. Sua razão dá ao objeto a uma função, tanto em conexão com o corpo, quanto de separação porque sua significação não é a priori, nem natural, e nem integrada à existência de fato dos fatos expressivos e excretivos do corpo humano, mas engendrada no plano da existência lógica do sujeito barrado pelo significante primeiro que o engendra no real.

Para que a função da metáfora opere, Lacan orienta aos analistas a tomarem seu axioma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” ao pé da letra. Não se pode trabalhar com o inconsciente lacaniano se não se tomar algumas precauções em relação à linguagem. Um pequeno erro, uma pequena falha de raciocínio, e vamos para a fórmula da “linguagem reduzida”, com suas ressonâncias metafísicas, muito difíceis de interpretar, posto que são insalubres para o sujeito ligado ao inconsciente estruturado como uma linguagem. Não que não haja sujeito na “linguagem reduzida”. Afinal, onde há escrita, há ou houve sujeito. Mas, em nosso momento histórico, moderno, discursivo, não se sairia do mito porque o objeto a  ficaria intensamente agarrado no plano da existência de fato.

 

A chave da estrutura do inconsciente e a negação do universo do discurso

Lacan fornece aos analistas a chave da estrutura do inconsciente, a qual concerniu à virada das relações de Lacan em relação ao Outro. A chave está na natureza do significante tal como ele propõe: “é da natureza de todo e qualquer significante não poder em nenhum caso se significar e ele mesmo” [5]. É por isso que é um erro deduzir da fórmula da linguagem reduzida o inconsciente.

Desse modo, podemos verificar que há no significante uma negatividade duplicada.

Neste ponto, Lacan introduz aqui uma outra lógica, apta a apoiar essa definição do significante. É a lógica matemática. Ela evoca a escrita inaugural da teoria dos conjuntos, um axioma de especificação sugundo o qual, a saber, não há interesse na função de um conjunto x, senão se existe um outro conjunto definido por x E y. Esse axioma é aproximadamente o seguinte: Dado que x não pertence ao conjunto de x, o conjunto de x = n, então x E y.

Em termos de linguagem, o conjunto dos significantes é tal que o conjunto de um significante qualquer tem como condição que este significante não pode se significar a ele mesmo. Necessariamente, haverá um significante que não pertence ao conjunto. Logo, a linguagem não constitui um conjunto fechado. Ou seja, declara Lacan: “não há universo do discurso” [6].

Este é um outro modo de Lacan refutar a fórmula da linguagem reduzida, que opera pela proporção entre significantes (em que significante é igual a significante) .

Mais ainda, podemos verificar como Lacan demonstra que a negatividade do significante, reforçada pela negatividade em matemática, é a negatividade da linguagem com sua consequente incompletude. Lacan faz relembrar o (falso) paradoxo de Russel.

Em não havendo no discurso nada que contenha tudo, Lacan informa que há algo que incita à prudência no manejo de das noções de “todo” e de “parte” e que exige na origem a seguinte distinção: o Um da totalidade e o Um contável.

O Um da totalidade é aquele que está refutado por Lacan no nível do discurso, ainda que possa ser suposto em algum lugar. O Um contável é de uma natureza que o faz se ocultar e deslizar, sendo-o apenas ao se repetir pelo menos uma vez. Esse Um, ao se fechar novamente sobre ele mesmo instaura na origem a falta que instaura o sujeito. Lacan orienta que, portanto, é deste Um que se trata na lógica do fantasma. Pois se trata de instaurar o sujeito.

Para isso, é necessária a operação da metáfora do sujeito, que se ocorre em função do significante enquanto tal, tendo por consequência a extração do objeto a lógico, o que impede o universo do discurso e o império do Um da totalidade.

John Walton

 

Referências

[1] LACAN, Jacques. A lógica do fantasma – seminário 1966-1967. Centro de Estudos Freudianos de Recife. Recife, outubro de 2008.

[2] Ibidem, p. 24.

[3] Ibidem, p. 25.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem, p. 26.

[6] Ibidem.

 

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